Pequena história de um cavalo

Maravilhosa história escrita pelo meu pai para mim quando eu tinha poucos anos e ele ficou um período longe de casa trabalhando em outra cidade.



 * Por Juvenal Azevedo

 Ele nasceu com a aparência comum a tantos milhões de outros cavalos pelo mundo.

Tinha pêlos castanhos, olhos castanhos, quatro patas, um focinho e tudo a que os cavalos têm direito.

 Enfim, era mais um cavalo no mundo, destinado a levar uma vida de cavalo e nada mais.

Mas alguns diziam que ele tinha algo de especial, talvez uma predestinação, um destino a cumprir.

 Não se sabe direito o que esses alguns viam nele. Uns diziam que era mais inteligente que os outros potrinhos da sua idade. Outros achavam que ele tinha um brilho diferente nos olhos castanhos invariavelmente tristes.

Outros ainda o achavam arrogante e temperamental. E também havia os que o achavam doce e meigo como só alguns cavalos sabem ser.

 É difícil dizer quem tinha razão, mas certamente nosso cavalinho era um pouco de todas essas coisas reunidas.

 Muito cedo na vida, ainda um pequeno potrinho, nosso cavalinho perdeu sua mamãe-cavala. E muitos se preocuparam com ele, procuraram mimá-lo e fazê-lo esquecer a falta que ele sentia da sua mamãe.

E, entre os que se preocupavam com nosso cavalinho, estava seu papai-cavalo, um cavalo velho que a vida toda trabalhara no campo puxando arados e que, nos últimos tempos, já não trabalhava mais porque tinha tido um acidente numa das patas. Mas essa já é outra história.

 E nosso cavalinho foi crescendo, desde cedo pegando no pesado e sonhando. Sonhava que se tornaria um belo cavalo de corrida, que ganharia muitos grandes prêmios nos hipódromos mais famosos do mundo e, quem sabe, que um dia ganharia asas e se transformaria num lindo e veloz cavalo alado.

Mas a vida se encarregaria de mostrar ao nosso cavalo que as coisas não se passariam bem assim. E a realidade é que ele cresceu, se tornou um cavalo adulto, casou com uma bela cavalinha que morava nas vizinhanças e teve, ele também, os seus próprios filhos, os potrinhos mais lindos do mundo, na opinião dele.

E sua vida continuava sempre igual. Trabalhava de sol a sol puxando carroças e o seu sonho de se tornar um cavalo de corrida famoso ficava cada vez mais distante. E o tempo foi passando.

Nosso cavalo, que nasceu potrinho, virou cavalinho e depois um cavalo adulto, já demonstrava sinais de que estava envelhecendo. Seus olhos já não tinham mais o mesmo brilho atrevido de outros tempos. Seus pêlos e sua crina já apresentavam falhas e começavam a desbotar.

E todo mundo desacreditava que ele um dia pudesse virar um cavalo de corrida respeitado, famoso e admirado. Até mesmo nosso cavalo começava a duvidar disso e, às vezes, ele próprio se sentia velho, alquebrado, apesar de suas patas ainda conservarem quase o mesmo vigor da juventude.

E apesar de ele muitas vezes ainda se julgar capaz de correr um grande prêmio contra cavalos mais novos, e com chance de vencer. Mas a sua vidinha continuava do mesmo jeito, puxando carroças de sol a sol.

Até que um dia... Ah, até que um dia ele teve de levar uma carroça até o hipódromo da cidade. E por artes ou travessuras da vida, era um dia de grande prêmio.

 Nosso cavalo chegou ao hipódromo cansado de ter carregado a pesada carroça por quilômetros e quilômetros. Mas quando o desatrelaram da carroça e sentiu-se livre daquele fardo, ele teve a intuição de que era chegado o momento, o momento pelo qual ele sonhara durante toda a sua vida: o momento de correr um grande prêmio.

 Quando os cavalos se alinharam para a partida, ele ficou por ali zanzando, esperando a oportunidade de correr também. E zás, quando foi dado o sinal para a corrida, ele se enfiou entre os outros cavalos e disparou. Disparou com a gana, a raiva, o desejo acumulado em muitos e muitos anos, disposto a provar a si mesmo do que ele era capaz. E assim foi. Ele correu, correu, correu como se daquilo dependesse a sua vida. E de certa forma dependia mesmo.

Foi abrindo uma distância cada vez maior entre ele e os demais cavalos, que jamais tinham visto nada parecido. Ele corria como se tivesse ganhado asas, as asas com que ele sonhara quando ainda era muito novinho. E correu, correu, correu de tal maneira, com tal fúria, que certamente acabaria ganhando a corrida.

Mas ele já não mais se importava com a corrida, com os outros competidores e com a platéia que, alucinada, o incentivava a correr mais ainda. Ele já não mais se pertencia, estava solto no tempo e no espaço, deslizando pela pista, em busca de um não sei o quê. No final de uma reta, em vez de virar à esquerda para continuar correndo na pista, ele prodigiosamente saltou a cerca e continuou correndo, correndo, correndo para nunca mais ser visto.

 Não se sabe, até hoje, que fim ele levou. Alguns dizem que caiu num abismo profundo, profundo, profundo. Outros dizem que pisou num obstáculo e quebrou a pata, ali permanecendo até o final dos tempos. Já outros acham que ele realmente ganhou asas e saiu voando rumo ao infinito, sumindo aos poucos no céu, até se tornar um pontinho invisível aos olhos da gente grande, um pontinho, talvez uma estrela, que só os puros olhos de uma criança podem ver e compreender – e é isso que eu espero que tenha acontecido com ele, este nosso sonhador cavalo dos olhos tristes.

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